quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sal

Sinto que este é mais um daqueles dias em que é melhor não acordar. É como se eu previsse tudo o que me ocorrerá hoje. Posso ver teu rosto, sentir teu cheiro. Posso me ver sorrindo pra você, mas você não retribui. Sinto-me mal, sabendo que, mais uma vez, posso ter te desagradado sem que tivesse percebido. Você parece nervosa, e eu sei que vai chorar. Você sussurrará algo que eu não vou entender bem. Tem a ver com confiança ou algo do tipo, mas eu não escuto direito. Você vai chorar mais, eu sei. E eu vou, desesperada e inutilmente, tentar convencê-la de que o que eu fiz, seja o que for, não foi por mal. Direi que é você que eu amo e que não quero nunca te fazer nenhum mal. Você vai retrucar, dizer que eu estou mentindo. Eu vou, enfim, perceber que não adianta falar, você não estará aberta pra me ouvir. Você vai tirar sua aliança e jogá-la em mim. Ou pela janela, não sei. E eu vou pegar a chave do carro e sair, te deixando sozinha em casa, sentada no sofá. Você ainda vai estar chorando. Eu vou ligar o carro e sair sem destino. Mas eu sei bem onde vou acabar estacionando. A praia vai parecer estar bem mais longe que nos outros dias. Enfim vou chegar perto o suficiente para descer do carro. Vou tirar os sapatos e sentir a areia entre meus dedos. Fecharei os olhos e deixarei que o cheiro do oceano entre pelas minha narinas enquanto meu corpo entra em uma espécie de transe. Eu chamo este transe de liberdade. Ali eu vou saber que estou livre dos males do meu cotidiano. Vou sentar na areia, de frente pro mar e ficar olhando as ondas enquanto descarrego meus últimos maus pensamentos. Minhas últimas mágoas, rancores ou qualquer outro sentimento que me sufoque a alma. Vou enterrar minhas angústias e caminhar em direção à água. Primeiro vou molhar os pés e fingir que me preocupo em não molhar minhas roupas. Mas depois eu sei que vou acabar mergulhando. Vou ficar submerso pelo tempo que o ar de dentro dos meus pulmões durar. Enquanto estiver sob a água, vou desejar que o sal do mar se misture com o das minhas lágrimas e lave tudo de ruim que ainda restar em mim. Vou emergir e perceber que as poucas pessoas que transitam pela orla vão me olhar com estranhamento. Mas eu não vou me importar. Não foi por elas que dirigi até ali. Voltarei então a ser menino. Vou sentir a mesma euforia que sentia há alguns anos. Vou sorrir da mesma forma. Vou mergulhar mais algumas vezes até que me sinta realmente limpo. Vou caminhar até o carro e entrar, mesmo molhado. Ainda vou conservar o sorriso de criança no rosto. Vou dirigir até em casa, porque sei que você vai estar lá. Talvez me esperando. Vou entrar sem dizer nada e vou roubar-lhe um beijo. Vou dizer-lhe que você é a mulher da minha vida. Que não posso me arrepender de nenhum dia que passamos juntos. Que quero passar o resto da vida ao teu lado. Que eu sempre soube que era você a minha mulher. A mulher que eu amo. Você vai, talvez, resistir um pouco. Mas depois vai me beijar mais uma vez. E vamos deitar no chão da sala. E trocar mais algumas juras de amor. E eu sei que é tudo verdade. Eu sei. Sinto que este é mais um daqueles dias em que é melhor não acordar. Mas eu faço questão de vivê-lo como se fosse o último. O único.